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Psicologia e moralidade: possíveis desafios no processo de psicodiagnóstico

Atualizado: 25 de out. de 2024

por Matheus Victor






. Um ensaio sobre psicodiagnóstico, moralidade e modos de subjetivação.


Questiona-se a compreensão de que certos comportamentos devam ser considerados a priori como "sintomas", sintomas esses que devem ser erradicados e mudados por terem um papel considerado prejudicial e maléfico ao paciente.


Psicologia e moralidade: possíveis desafios no processo de psicodiagnóstico.


“Não nego, como é evidente – a menos que eu seja um tolo –, que muitas ações consideradas imorais devem ser evitadas e combatidas; do mesmo modo, que muitas consideradas morais devem ser praticadas e promovidas – mas acho que, num caso e no outro, por razões outras que as de até agora. Temos que aprender a pensar de outra forma – para enfim, talvez bem mais tarde, alcançar ainda mais: sentir de outra forma.’’


Nietzsche, § 103



Partindo da experiência dos estágios da graduação em psicologia, e de inquietações que circundam nas práticas deste campo, este ensaio convida a uma reflexão acerca da utilização, e de suas implicações, daquilo que costumamos chamar de saberes psi no processo de psicodiagnóstico em psicologia. A hipótese, aqui, é que tal processo esteja ligado a preceitos morais do nosso tempo de forma minuciosa, o que pode produzir efeitos perigosos, tanto nos modos de subjetivação de quem é atendido, quanto para a formação do psicólogo.

Na esteira das reflexões de Nietzsche, que nos convida a questionar essa perspectiva de uma psicologia neutra e livre da moralidade, consideramos que:

“Toda psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e temores morais: não ousou descer às profundezas. Compreendê-la como morfologia e teoria da evolução da vontade de poder, tal como faço – isto é algo que ninguém tocou sequer em pensamento: na medida em que é permitido ver, no que foi até agora escrito, um sintoma do que foi até aqui silenciado [...]” (Nietzsche, §23).

Assim como para Nietzsche, o interesse aqui é buscar o que seriam essas profundezas no contexto dos estágios de psicodiagnóstico, dado que muitas vezes elas estão veladas pelas avaliações morais que podem dar forma e justificativas a preconceitos. Em nossa prática estamos o tempo todo ligados à necessidade de compreensão do caso, da pessoa atendida, e essa necessidade evidencia que a moralidade do profissional psi compõe esse jogo, uma vez que é ele quem vai escutar e diagnosticar alguém. Isso se dá principalmente quando realizamos uma “avaliação compreensiva” pois, segundo Cunha (2000), na “avaliação compreensiva” o caso é considerado de forma mais geral para determinar o nível de funcionamento da personalidade, examinando funções do ego e sistemas de defesas. Todo esse determinismo se justifica com base nos saberes psi. Nessa posição, nossos discursos ganham legitimidade, mérito e sobretudo poder sobre aquilo ao que nos propomos a falar. Neste caso, falar sobre as subjetividades e as vidas de outras pessoas. Como tem sido produzido esse conhecimento para realizar tal análise? Que valores morais carregam? Questionamentos que ecoam durante os processos da formação em psicologia, principalmente nos estágios, diante de pessoas em sofrimento.

Durante a formação em psicologia, em um processo de diagnóstico, por exemplo, somos orientados a realizar análises a respeito do paciente e diagnosticá-lo durante o período de, no máximo, dez atendimentos. Mas, muitas vezes, o número de atendimentos é menor devido ao processo e funcionamento da universidade. Esse modelo pode implicar em diagnósticos precipitados e até mesmo equivocados, produzindo efeitos perigosos às vidas ali em questão, visto que essas pessoas podem carregar esses laudos pelo resto de suas vidas. E, visto que tais laudos podem impactar seus modos de viver dali por diante. Machado (2010) nos lembra que “toda interpretação já é efeito de interpretações e toda interpretação produz efeitos interpretativos”, e que, portanto, a realização de um diagnóstico, “em determinada época e local, tem efeitos diferentes, que são construídos conforme os tempos e as relações. Esses efeitos revelam, também, dimensões políticas.” Tais dimensões políticas podem estar relacionadas às questões morais que atravessam os psicólogos, e a psicologia, nos dias de hoje.

É a partir destas reflexões que nos aparece os perigos de avaliar subjetividades como se ela pudesse ser compreendida através de algumas poucas observações e baseada em poucos atendimentos. Além disso, questiona-se a compreensão de que certos comportamentos devam ser considerados a priori como “sintomas”, sintomas esses que devem ser erradicados e mudados por terem um papel considerado prejudicial e maléfico ao paciente. A possibilidade de determinar aquilo que deve permanecer ou ser erradicado ilustra o poder que a nossa posição enquanto profissionais da psicologia podem exercer sobre as subjetividades, visto que quem irá considerar e interpretar esses comportamentos, bem como avaliá-los, somos nós, psicólogos ou estudantes de psicologia. As interpretações realizadas podem carregar valores muitas vezes que normatizam os corpos e as subjetividades, como a busca por adaptação ao trabalho ou à escola.

Além disso, se tomamos a disciplina de psicodiagnóstico – e seu formato – como parte formativa do psicólogo e de seu fazer psi, é fundamental questionarmos: quais os efeitos de uma formação que afirma a necessidade de diagnosticar pessoas tão rapidamente? Sair desse movimento não parece um trabalho fácil, visto que é esperado que o profissional psi faça exatamente esse papel de classificar comportamentos considerados “desajustados”, tomá-los como sintomas e, assim, falar o que deve ser modificado e como deve-se viver. Mas, e se pensarmos no sintoma de outra forma? No sintoma como um modo de vida, como um modoe pelo qual nossos corpos estão em relação a ela? Deleuze e Guattari nos convidam a experimentar, ao invés de simplesmente interpretar.

“A Loucura não é necessariamente um desabamento (breakdown); pode ser também uma abertura de saídas (breakthrough)... O indivíduo que faz a experiência transcendental da perda do ego pode ou não perder de diversas maneiras o equilíbrio. Pode, então, ser considerado louco. Mas ser louco não é necessariamente ser doente, mesmo se em nosso mundo os dois termos se tornaram complementares...” (Deleuze e Guattari, 2017, p.177).

Ou seja, assim como tais autores, propomos que esses sintomas também possam ser pistas para um ponto de abertura, saída, talvez um ponto de passagem, uma forma de protesto para se criar algo novo. E essa direção parece ser muito pouco pensada e trabalhada nos processos de formação do psicólogo.




REFERÊNCIAS

BAPTISTA, Luis. A Cidade dos Sábios: Reflexões sobre a dinâmica social nas grandes cidades. São Paulo: Summus, 1999.

CUNHA, Jurema Alcides. Psicodiagnóstico – V. 5ª Edição. São Paulo: Artmed, 2003.

CANGUILHEM, George. O que é a Psicologia.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. 2ª Edição. São Paulo: Editora 34, 2017.

MACHADO, A. M. . Oportunidade de Luta. In: LEITE, A. J. M.: COELHO, J. M.. (Org.). Você pode me ouvir, Doutor? Cartas para quem escolheu ser médico.. 1ed.Campinas - S.P.: Saberes Editora, 2010, v. 1, p. 1-6.

NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: Reflexões sobre os preconceitos morais. 1ª Edição. São Paulo: Companhia de Bolso, 2016.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem do do Mal. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005.



 
 
 

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